Cinema, identidade e memória
A produção da alteridade migratória na cinematografia espanhola desde la aldea maldita, 1930 a princesas, 2005

Rafael Tassi Teixeira
Universidade Tuiuti do Paraná (UTP/PR). Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR). Doutor em Sociologia pela Universidade Complutense de Madrid (2004). Professor do Programa de Mestrado e Doutorado em Comunicação e Linguagens da UTP/PR e Professor Adjunto da FAP (Sociologia da Arte e Estudos Culturais). Seus estudos abrangem a área das mediações culturais, estudos diaspóricos, identidades emergentes e a sociologia dos processos migratórios, destacando-se, recentemente, as construções das alteridades in between na cinematografia contemporânea. Desenvolve pesquisas, na atualidade, sobre a identidade e o tratamento sinedóquico das minorias no cinema ibero-americano.
Correo: rafatassiteixeira@hotmail.com 

Recibido: enero 2014 Aprobado: marzo 2014

Resumo
A cinematografia espanhola apenas recentemente incorporou como temática central os processos de mobilidade (especialmente internacional) e a construção das subjetividades em contextos de partida e recepção de coletivos migratórios. Mas a densidade perceptiva da migração como ‘fenômeno’ cinematográfico, dualiza-se com a ocupação do imaginário migratório nas agendas políticas, culturais e midiáticas destacadas na visão da Espanha como lugar de destino de imigrantes a partir dos 1990. A proposta deste trabalho é fazer uma breve leitura sobre as noções centrais dessa alteridade cinematográfica tendo como grupo focal a construção do ‘estrangeiro’, ‘exilado’, ‘diaspórico’ e ‘ilegal’, em alguns dos filmes espanhóis mais representativos na temática das relações entre cinema, memória e identidades.
Palavras-chave: análise dos discursos cinematográficos; cinema, migração e identidades; estudos visuais e adaptabilidade

Resumen
El cine español ha incorporado recientemente como tema central los procesos de movilidad (especialmente internacional) y la construcción de subjetividades en el contexto de la partida y la recepción de colectivos migratorios. Pero la densidad perceptiva de la migración como “fenómeno” cinematográfico, tiene como contraparte la ocupación por parte del imaginario migratorio de las agendas políticas, culturales y mediáticas construyendo una visión de España como destino de inmigrantes a partir de 1990. El propósito de este trabajo es hacer una breve lectura de las nociones centrales de esta alteridad cinematográfica tomando como grupo objetivo a la construcción del ‘extranjero’, ‘exiliado’, ‘diaspórico’ e ‘ilegal’ en algunas de las películas españolas más representativas de las relaciones entre el cine, la memoria y la identidad.
Palabras clave: análisis del discurso cinematográfico, cine, migración e identidades, estudios visuales, adaptabilidad

Abstract
Spanish cinema has recently joined as a central theme the human mobility processes (especially international) and the construction of subjectivities in the context of the departure and receiving migrant groups. But the perceptive density of migration as a cinematographic “phenomenon” has as its counterpart the occupation of political, cultural and media agendas by the imaginary of migration, building a vision of Spain as a destination for immigrants from 1990. The purpose of this paper is a brief reading of the central notions of this cinematic otherness taking aim at the construction of the ‘alien’ group, ‘exiles’, ‘diasporics’ and ‘illegals’ in some of the most representative Spanish movies dealing with the relations between cinema, memory and identity.
Keywords: analysis of cinematographic discourse, cinema, migration and identities, visual studies, adaptability

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Os processos migratórios nas representações cinematográficas, como expõe França (2007), negociam novas possibilidades hermenêuticas a partir de uma tomada de consciência da intensificação da globalidade das migrações, especialmente na virada dos 1980, a nível mundial (Portes, 2004). No campo cinematográfico, como destaca Quiñones (2012) a discussão da temática migratória incrementa-se com a busca de alinhamento em algumas culturas cinematográficas ao propor narrativas fílmicas que os protagonistas centrais sejam imigrantes em fluxo, sobretudo transnacionais, em sub temas derivados: problemas de adaptação, diversidade linguística, integração, processos aculturativos, projetos de permanência e ilegalidade, criminalização das identidades, impermeabilização de fronteiras, precariedade da experiência migratória, etc1.

O ‘cinema imigrante’, correlacionado ao que Montero (2008) expõe sobre a estrutura fílmica em um engajamento da percepção da agudização de temas pertinentes a experiência do deslocamento, portanto, tem seus problemas ao historicamente condicionar a figura do ‘deslocado’ territorialmente entre dois topos principais: tratamentos fílmicos que judicializam as transposições de fronteiras, sobretudo na questão de uma ‘ameaça’ a certa identidade nacional e tratamentos fílmicos que envolvem uma percepção paternalista e pouco reflexiva do ponto de vista da subjetividade histórica das identidades migratórias.

Como observa Bergfelder (2005), o cinema imigrante correlaciona ficcionalmente a figura do ‘desplazado’ com certo grau de passividade intelectiva, deixando de lado a importância da empresa migratória estar focalizada a partir da tomada de consciência e do empreendedorismo clássico associado aos imigrantes que a literatura das teorias migratórias sempre ressaltou (Nair, 2006; Blanco, 2006; Mateos, 2002; Castles e Miller, 2003). A falta de iniciativa dos protagonistas e os incisos analíticos que frequentemente recaem em personagens secundários, demarcam certo vitalismo essencial que subordina a categoria ‘migrantes’ a um tratamento excessivamente condicionado pelo fator de mobilidade e pela questão dos fluxos macropolíticos do fenômeno. E, portanto, um tratamento que pode variadas vezes ser hiper-representativo ao reificar diferenças e essencializar concepções de pertencimentos. Segundo Van Liew (2008) esse problema capilariza-se ainda mais com o efeito alegorizador do cinema, ressaltando as retóricas de autenticidade e, múltiplas vezes, expondo uma dimensão abstrata que não respeita as especificidades culturais em suas incoerências e contradições formativas, submetendo sujeitos a categorias lidas e apresentadas como estáticas, muito distante das individualidades, por exemplo: “gênero”, “raça”, “etnicidade” e “nacionalidade” como posições supra-explicativas2.

A menor ênfase na concepção descritiva que na densidade hermenêutica dos filmes com temáticas migratórias, como analisa Monterde (2008), acaba vinculando os discursos fílmicos em tipologias que privilegiam um enfoque organicista, direcionado a conflitualidade e as tensões imigrados x receptores. Por exemplo, o tratamento temático historicamente mais preocupado com questões como racismos, explorações laborais, diferenças culturais (como se as culturas e seus portadores, além de estabilizados em suas representações, portabilizassem sempre uma dificuldade de compreensão mútua), que com os processos de alterdirigência dos sujeitos migratórios, acabam por disponibilizar análises excessivamente estabelecidas nas aderências das formas de representação mais oficializantes das subjetividades. Ou seja, em concordância ao que Foster (1999) critica no cinema ‘pós-colonial’, os discursos fílmicos, quando olham ‘cultura’, raramente veem hierarquias sociais, e, quando analisam processos de socialização, distanciam-se das perspectivas simbólicas. E o duplo erro de marginar as esferas das subjetividades a questão da cultura como hierofania e da rigidez da socialização, tendem a produzir imagens pouco úteis do ponto de vista da ambiguidade e das incoerências e inconsistências próprias às formações culturais, como ressalta Bhabha (1994). No campo cinematográfico, a perene presença de mecanismos de admissão das identidades emergentes, e, também, tal como escreve França (2007), identidades “mutantes, fraccionadas, ilegalizadas”, faz conscientizar-se um cinema que olha a alteridade como não reduzível a lógica da resistência e da revitalização das identidades locais, mas como um processo de auto-referencialidade que busca, significativamente, a auto-determinação a partir da disposição para o encontro, para pensar os contextos fílmicos como dialetizáveis em seus estados formativos e apresentáveis3.

Os sujeitos dos cinemas ‘emergentes’ e dos cinemas ‘diaspóricos’ precisam das constâncias fílmicas para não terem negadas suas especificidades representativas e espoliadas suas imagens. Obviamente, isso não significa simplesmente uma preocupação cinematográfica em retratar um campo de aquisição fílmica que retroceda o processo de auto-representação ao que, por exemplo, a cinematografia beur tende a produzir, sobretudo a partir dos 19804. Trata-se de um cinema que procura retratar mais fidedignamente os processos ambivalentes respectivos as distintas realidades sociais que a temática migratória exemplarmente condensa. A natureza de filmes como O Ódio (Mathieu Kassovitz, 1995) e Biutiful (González Iñarritu, 2011) capta as distintas dimensões de um cinema que se preocupa em ser politicamente perturbador e corresponsável, em propostas fílmicas indagativas não estritamente minoritárias ou longe de serem não comerciais, que fazem emergir as condições dissonantes, contraditórias e mesmo imprevistas dos processos de encontro e de disputa por espaços e visibilidades. Um cinema que, idealmente, passa por ter uma maior disposição etnográfica no percorrer lugares e convivências, âmbitos e cotidianos que são ao mesmo tempo abrangentes e específicos, reais e imaginários, duos e exclusivos, ou, tristemente, associados ao espaçamento da distância e da disposição para a compreensão, ao mesmo tempo que as localidades e realidades sociais se aproximam5.

As novas Invasões Bárbaras dos cinemas dos emergentes e das emergências sacralizam a condição mais pletórica das representações cinematográficas que tendem a utilizar o potente mecanismo de disseminação de estereótipos (Gubern, 2004) para reforçar contra tópicos que simbolicamente conheçam o uso dos símbolos e a desconstrução dos lugares comuns. A alta carga de representatividade fílmica consubstanciada na maioria dos cinemas mundias (Shoat e Stam, 1994), precisa passar pelo cuidado sociológico de conseguir conhecer os próprios arquétipos formadores não no sentido de erradicá-los, mas no de aprender a fortalecer o espírito crítico detectando-os e diminuindo sua posição de manipulação6.

Os filmes mais compromissados sociologicamente, feitos com uma dinâmica da alternância entre ficção e realismo, precisam saber expor mais diacriticamente a pletóricas das identidades poliédricas, profundamente reflexivas, não tendo receio de avançar ao relato realista e profundo em suas naturezas ambivalências. Cinemas que desconstroem as hiperrepresentatividades e sensibilizam as contradições explícitas e implícitas das realidades sociais, ao mesmo tempo que melhor respeitam a gramática da cohabitação e da convivência, geralmente tensa, mas também disposta a ser provisoriamente não apenas um diagrama da esfera do cotidiano, mas um retrato verossimilhante dessas realidades, são cinemas que avançam na disposição a apontar quão inestáveis e ‘incoerentes’ (Yúdice, 2004) podem ser as identidades. Antes que dualizar, simplesmente, com a supereditação de arquétipos dominantes sem se importar com o caráter nominalmente excessivo para uns e diminuto para outros, as cinematografias mais reflexivas, como, por exemplo, os filmes ao mesmo tempo mais cuidadosos e pessoais de Kusturica e Gatlif, no domínio do retrato da cinematografia ‘cigana’, são mostras de que o caráter provisório das culturas não pode ser anulado pela organização sistemática e rígida da focalização. Se a intolerância não permite ir além do estereótipo, vendo, na imagem dos ciganos ou imigrantes, uma ameaça à ordem e à diversidade cultural, o cinema precisa importar uma maior correlação com o trabalho da teoria social contemporânea (Giddens e Turner, 1999) ao saber questionar a modalidade simultânea e precária da condições das relações sociais.

No caso da cinematografia espanhola, Ballesteros (2001) aponta para percepção do fenômeno da construção de uma identidade migrante e a relação com a alteridade, em filmes tão iniciais como necessários, como La Aldea Madita (1930, Florian Rey), com uma temática sombria e densa, ação pausada, ideologia conservadora, mas que narra o drama de um matrimônio provinciano que se vê obrigado a separar-se em circunstâncias adversas: Acacia, a protagonista, abandona o marido e acaba se prostituindo na capital espanhola, regressando ao pueblo hispânico com o sentido de que a inadaptabilidade tem a ver com uma cultura de procedência e uma hierarquização do mecanismo do pertencimento7.

Dentro da historiografia sobre o fenômeno da alteridade migrante na Espanha, um segundo filme, de 1951, Surcos, de José Antonio Nieves Conde, também explora o tema da família que se vê obrigada a sair do campo e da filha menor que cai na prostituição na capital da Espanha. Surcos faz parte de uma primeira etapa do cinema espanhol em perceber as identidades como cindidas na geografia campo-cidade, e oferece um retrato desolador da sociedade produto do franquismo (desemprego, prostituição, mercado negro, insolidariedade). Os vínculos formais com filmografia rosselliniana e cine social norte-americano do pós-guerra são evocados com grande concisão no enfoque narrativo que busca inspiração no mundo cervantino e no neorrealismo tipicamente italiano. A temática da imigração é pano de fundo para explorar o momento de um cinema sub-reptício, que significa o período de isolamento internacional da Espanha e narra a tragédia da adaptação camponesa a vida urbana. Feito nove antes que Rocco e seus irmãos, desenvolve a narrativa sobre o pano de fundo da geografia falsa e decorada da cidade, em contraposição a plenitude da vida no pueblo. Surcos é um secundo filme que retrata a dinâmica do pertencimento e as questões associadas aos processos de mobilidade interna na Espanha. Agencia a percepção da alteridade em uma estética nominalista que constroí a recepção da foraneidade no sentimento de estar à margem em um sistema industrial, em múltiplos aspectos, com a sensação da inadaptabilidade e o meio urbano como dominação. Faz parte de um cinema que se propõe, solitariamente, em desenvolver-se como um retrato social e desolador de uma sociedade já produto do franquismo, com seus muitos temas correlacionados: desemprego, prostituição, mercado negro, insolidariedade8.

Representativo de uma primeira etapa heróica do cinema da alteridade, quase duas décadas depois, um terceiro filme sobre a construção da alteridade marca o começo de um cinema verdadeiramente independente na Espanha franquista. La Piel Quemada (Josep Maria Forn, 1967) é uma transposição fílmica da obra homônima de Alejandro Casona, sendo um cinema feito quase às margens da legalidade, instruído pela disposição em não se importar em não ter licença de exibição e caracterizar-se pelo uso crítico dos temas sociais do contexto histórico hispânico. Expondo o tema migratório na da literatura social de Casona com a realidade da percepção migratória da década de 1960, dá constância fílmica a questão da inadaptabilidade dos granadinos na construção civil em Barcelona, sendo um retrato íntimo do tema da recepção e do distanciamento de realidades. Bem escrito, transposto e interpretado, La Piel Quemada, exterioriza o tema da alteridade pessimista, sobretudo na dificuldade de integração e na culpabilização da memória do deslocamento. Provavelmente, é um filme que marca a passagem para uma segunda etapa, de entrecruzamento do mito fundador espanhol com o movimento de uma sociedade que começa a conhecer-se longe de suas fronteiras, em um momento de saída e desbravamento de indivíduos e coletividades rumo a uma Europa que desperta, para além da territorialização endógena, a questão da identidade e da dominância do arquétipo da mitificação da saída.

Nesse momento, a filmografia hispânica se divide em dois movimentos que denotam dois estilos de cinema e sociedade: os chamados cine de playa, como subprodutos tipicamente dos 1960 e começo de 1970, com uma vontade explícita de promover a costa espanhola para os turistas estrangeiros e potenciais compradores de casas na costa Brava, Mallorca, Benidorm, etc; e os filmes dos emigrantes, compromissados em interseccionar-se com a falência do sistema de incorporação da sociedade espanhola e o retrato amargo da saída ao estrangeiro. No caso do segundo, são filmes que reverberam uma necessidade de dar sentido à etapa de compreensão de uma Espanha como lugar de saída, filmes emergentes e inspirados em uma sociologia da dispersão, em que a uma terceira via possível na cinematografia espanhola se volta para a imersão em temas tabus, como o aborto e a homossexualidade, em terras estrangeiras. Pode-se tentativamente observar que esse cinema, como escreve Santaolalla (2005), é um cinema da insurgência diaspórica, em certo sentido paradigmático de uma realidade social ambivalente que quer ver a Espanha como território de incorporação de coletividades privilegiadas, e outra sociedade que expurga seus imigrantes a Europa a ser descoberta. O tema do hibridismo segue no contexto de certa continuidade com a primeira etapa sociológica campo-cidade, mas que se entrecruza com a estética vanguardista de um cinema de ferramentas da incorporação e do sentido do estranhamento em um novo discurso de construção da alteridade na internacionalização da dinâmica da fronteira. “Lar”, se torna um movimento de dispersão e concentração na medida que uma sociedade intersecciona-se em territórios de acolhimento de turistas europeus desbravadores da costa mediterrânea e espaço de partida com expulsão de coletividades como renúncia da admissão do problema das identidades subjulgadas9.

Um terceiro movimento, que é possivelmente o mais importante do ponto de vista da construção de um ‘cinema migratório’, são os filmes surgidos na reverberação do tratamento midiático sobre a Espanha como uma nova cristalização do processo formativo de uma identidade que se vê como urgentemente continental, promovida após a união com a Europa em 1986 e que começa a observar-se como moderna e democrática. O grande paradigma sintomatológico de um cinema de emigrantes para um de imigrantes é a etapa da visibilidade do território espanhol não mais como dicotomia interna ou exterior da pertença, mas como estrutura de uma mudança social profunda, sobretudo a partir de 1990, em que a diretores consagrados começam a se interessar pelo tema das identidades e do quão negociadas, diaspóricas, mediativas, sentimentalizadas e indefinidas elas podem ser10.

A formação de um cinema que retrata um novo europeísmo mitográfico e, ao mesmo tempo, um descuido com a memória histórica espanhola de emigração e imigração tradicionais, tem a ver com o questionamento do paradigma mass media da percepção da alteridade. Examinam-se temas como xenofobia e a manifestação social da intolerância, sendo as composições fílmicas parcialmente concorrentes e parcialmente críticas a retórica migratória importada do discurso Nós-outros perpetuados pelos meios de comunicação. Os temas sociais e os ciclos de passagem, carregam a virulência de um discurso que é híbrido com outras cinematografias (Navarrete, 2009) tematizadas, sobretudo, como um cinema da emancipação, miscelânea entre a estética da ficção e do documentário, em paralelo a um discurso que tenta humanizar a figura do imigrante. Trata-se de, no caso espanhol, mais que uma disposição em construir especificidades fílmicas, desenvolver um cinema anti-hegemônico, em imediata discordância a percepção social do fenômeno no início da década de 1990, e que trabalha a questão das identidades na crítica ao processo de formação da necessidade de nova identidade europeia pós 198611.

O ponto de inflexão nesse cinema que dimensiona a questão do ‘contágio’ entre culturas e o tema da impossibilidade do diálogo com foco na vitimização dos imigrantes, provavelmente é o filme As Cartas de Alou, (1991) de Montxo Armendáriz. Um filme que surge como o antecedente de um choque de imaginários simbólico-sociais da Espanha do passado e da nova geopolítica da modernidade: rompe-se o mito da impermeabilidade das fronteiras, dicotomiza-se a alteridade para fora e para dentro da estética da incorporação. As Cartas de Alou, é um filme emblemático porque é a primeira obra espanhola inteiramente dedicada a temática dos imigrantes africanos. Marca uma transformação do tema da invisibilidade imigrante ao conceder voz e protagonismo a figura de Alou, imigrante africano que se encontra na dinâmica da tensão entre as subjetividades migratórias e a dificuldade de incorporação. De certa forma, é o filme que encabeça a geração seguinte e contemporânea do cinema migratório espanhol. Abre espaço, por exemplo, para filmes importantes como Said (1998), de Llorenç Soler, Flores de Otros Mundo (1999), de Icíar Bollaín e Extranjeras (2003) de Helena Taberna, que são contundentes no tratamento fílmico da identidade porque desenvolvem a relação da representação mutilada do imigrante desde uma voz própria, fragmentada, dividida no âmbito da receptividade negativa e da incorporação difícil, ao mesmo tempo em que trabalham o tema da coexistência problemática dos espaços, dos acordos provisórios e negociados em lugares essencialmente conflitivos12.

Com a preocupação cada vez mais alta de desvincular-se dos paradigmas sócio-históricos do quadro geopolítico espanhol desse momento, muitos filmes começam a contextualizar a realidade social emergente da Espanha dos 1990 e pensar a migração como um fenômeno estrutural, que envolve impulsores e receptores, que tem a ver com a perspectiva, cada vez mais difícil no plano nacional, da integração e da convivência. São abertura a um cinema posterior, fundamentalmente a partir dos anos 2000, que tencionam as realidades multiétnicas compaginadas de outras cinematografias, e, sobretudo, não tem receio em avançar na poliglosia de um contexto de multiculturalidade e indefinição, e que se ocupam de um hibridismo, camada a camada, que é ao mesmo tempo diaspórico e abrangente, estabelecido em um microcosmos de uma globalização feita sempre precária e dolorosamente para os que precisam deslocar-se in between.

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Referencias

1   Quiñones (2012) exemplifica essa discussão ao abrir uma série de reflexões sobre a composição de um ‘campo’ de cinematografias migratórias: seriam as temáticas migratórias um gênero ou sub-gênero cinematográfico? A imigração é temática ou aparição icônica? O ‘cinema imigrante’ é composto de produções escritas e dirigidas por imigrantes ou narrativas específicas sobre eles?

2   Adicionalmente, os temas fílmicos sobre a experiência imigrante tem sido mais concertados com questões das sociedades de acolhida que propriamente com as dificuldades e pertinências anteriores ao processo de mobilidade, entendo o projeto migratório como empresa unitária, focada na recepção e na inadaptabilidade conflitiva dos imigrantes.

3   França (2007) comenta da importante questão de que um ‘cinema das minorias’ não pode ser vinculado simplesmente nem as identidades locais nem aos sintomas da “pulverização das identidades”.

4   A cinematografia beur expande essa condição demarcatória ao expor o que vem sendo feito como constância fílmica no trabalho das séries de cineastas nascidos na França ou no Magreb (e imigrantes na infância), em uma progressiva onda de filmes sobre imigração e condições de convivência tensa nos países receptores.

5   Saskia Sassen (2010) é uma das teóricas contemporâneas que ilustram esse processo de ‘contaminação’ possível entre as identidades locais, nacionais e transnacionais em um mesmo espaço sinônimo de ‘glocalismo’ ou a esfera da produção da localidade na contrapartida de uma globalização que emerge em todos os poros de disputa por categorias, lugares, inferências e subjetividades, em maior escala que um interesse para a base mais relacional das identidades. Aquilo que Bauman (2001) chama de comumente de economia psíquica da violência nos estados cotidianos de ser e pertencer.

6   Lembrando, como o faz Xavier (1985) que todos os cinemas apresentam reproduções e diálogos das formações das identidades que precisam comportar as fisionomias das características que estão baseadas, mesmo quando são presentificadas pelo estereótipo.

7   Contaminada com a estética de Murnau, Lang, Mamoulian, e Dupont, sobretudo por (Varieté, 1925) e Amanhecer (Murnau, 1927), La Aldea Maldita é um filme que retrata os rostos da miséria, da emigração coletiva em uma caravana carregada de animais e gentes, por exemplo, em uma sequência impressionante e de grande beleza plástica, influenciada pela estética do cinema campesino de Alexander Dovjenko. Enorme éxito comercial em Paris (esteve um ano em cartaz), comunica que a cidade não é progresso, mas perversão, sendo a protagonista somente é feliz no regresso a terra, idílica e reificada.

8   O enfoque narrativo de Surcos, sobre a percepção da itinerância e a inadaptabilidade na cidade, remete a um hibridismo que busca pontos de inspiração no mundo cervantino espanhol e no neorrealismo tipicamente italiano.

9   Esses dois compostos cinematográficos concorrem nessa etapa de etnicização da diferença: cinemas de promoção de uma realidade turística vantajosa (sol, mar e praia das costas leste espanholas) e cinemas da dimensão do estranhamento, sobretudo na internacionalização da ‘retirada’. São exemplos do primeiro modelo filmes como Amor a la española (1966) de Fernando Merino, e En un lugar de la Manga (1970) de Mariano Ozores; e do segundo filmes com temáticas da dispersão como Vente a Alemania, Pepe (1971), de Pedro Lazaga e Españolas en Paris (1971) de Roberto Bodegas.

10 Taxi, de Carlos Saura (1995); Cosas que dejé en la Habana, de Gutiérrez-Aragón (1998) e El Cuarteto de la Habana, de Fernando Colomo (1998), são exemplos dessa transformação.

11 Os antecedentes da realidade social incorporada no ‘cinema dos imigrantes’ acontecem com a caída do muro de Berlim (1989), a unificação monetária do euro (1990) e a desaparição da Yoguslávia (1991), precipitando-se a dispersão de migrantes do leste europeu por toda a Europa e aumentando a percepção social de “avalanche”, para usar um termo bastante presente nos meios de comunicação espanhóis nessa época.

12 O cinema de Soler, um veterano do documentalismo militante, por exemplo, é um marco importante porque avança no terreno exposto por Armendáriz e consegue outorgar subjetividade histórica e composição narrativa própria ao sujeito imigrante. Ao mesmo tempo, em Said, explora-se a dificuldade de cruzar o estreito, estruturando-se na recepção e no tecido sócio-político da Espanha dos 1990.

13 Princesas (2005) é fundamental porque exterioriza um diálogo baseado na multiculturalidade, sempre aos pedaços, e dá sequência aos filmes multiétnicos dos 2000, como En Construcción (2000) de José Luis Guerín e De Nens (2003) de Joaquim Jordà. Também é um marco na transposição aos filmes da segunda metade da década, que condensam a perspectiva da alteridade dentro e fora das fronteiras, como Raval Raval (2007) de Antoni Verdaguer e Un Franco e 14 Pesetas (2006) de Carlos Iglesias.